10 POEMAS DO LIVRO “O PERFUME DO ÁTOMO”
Este livro foi publicado em 2005 com prefácio do crítico literário do jornal O Globo, André Luis Mansur. E aqui apresento uma seleção de poemas narrados . Além disso, atores e atrizes interpretam alguns desses poemas.
CADA VEZ QUE O SOL NASCE, UM MORRO UM DIA
Apesar da presença eterna.
Metade do dia se esconde.
O Sol tem luz de lanterna.
Sua tomada está onde?
Ilumina a lágrima do africano.
Matiza o petróleo na água.
Atravessa a fumaça do cano.
Dá charme ao magnésio do jaguar.
Prolifera o verme na comida.
Resseca as passas dos burgueses.
Tira o verniz da madeira corroída.
Muda de esposa a cada 3 meses.
Derrete o batom da menina prostituída.
Cheira o solo da plantação de maconha.
Com água e pedra se faz lodo.
Ilude – dá o amanhã pra quem sonha –
Seca o esperma quando eu fodo.
Na praia dá tesão nos garotos.
É mais feio na favela que moro.
Expulsa as baratas dos esgotos.
Incomoda o bebê de colo.
Esquenta o malte e a cevada.
Faz banquete com árvores no churrasco.
Cega o olhar negro do carrasco.
Dá conjuntivite em rico e pobre.
Reluz pedra, merda e cobre.
Basta da sua ótica.
Você vê o que mais te satisfaz.
Pense nesta frase gótica:
“O Sol nasce para todos os mortais.
Pois aos defuntos já não incomoda mais”.
https://www.youtube.com/watch?v=iUlZDArRTVY
TODO MUNDO VAI TER UMA DOENÇA
Quero debilitar meu corpo
Com algo que não me corroa,
Enfraquecer o espírito
Com alguma coisa que me doa,
Como a chuva do céu
— impressionantemente não voa.
Desejo ficar imóvel numa cama,
Ouvir lamentos de pena,
Captar orações, rezas, promessas,
Como o crucifixo que fiz de antena.
Fincar na lembrança coisas boas,
Antecipar o sofrimento que terei,
Pedir a Deus que mude a lei,
Faça todo homem e mulher
Ter opção,
Livre arbítrio sem punição.
Poder mudar o castigo do destino,
Mostrar que enfermidade
É a ofensa que oprimo,
E desobedecer tudo que a lógica pensa.
Não quero falecer sem ter
Escolhido minha própria doença.
COMPREI UM TERRENO NA LUA
Se o mundo se acabar em fogo.
Antes de ir pro céu.
Quero apostar meus pecados num jogo.
Dar um passadinha num bordel.
Se o planeta se afogar numa onda.
Vou mandar pro inferno uma sonda.
Pra saber se tem espaço.
E mudar falsamente tudo o que faço.
O anticristo voltará no meio do caos.
Sente-se bem no seio dos maus.
E o dilúvio pra ficar completo.
Dará vida ao chifrudo feto.
O profeta da salvação morrerá.
Num dia de eclipse.
E a besta da igreja.
Não impedirá o apocalipse.
Que tanto a Bíblia almeja.
Será o fim do mundo.
E eu estarei bem longe daqui.
Enquanto vocês se matam.
Eu vou morrer de rir.
PORTAL PARA SEGUNDA REALIDADE
Bem perto daqui existe um lugar
Onde o poste flutua,
A virgem anda nua,
Pessoas-mutantes voam no zepelim.
Todo mundo trabalha em casa,
Ninguém sai sem capa de plástico,
Crianças compram asas.
Isso não é fantástico?
A lua é uma cavidade,
Pontes subaquáticas se elevam.
Quem tem dinheiro se congela,
Nos países pretos, nevam.
Espíritos morrem virando carne de vela.
A redoma de vidro gigante purifica o ar,
Um novo gás colorido solidifica.
Lá é outro cá!
Homens conversam com animais,
Frutas, legumes e verduras na estufa.
Células nascem com personalidade,
Pranchas voadoras e turbinadas pantufas.
Nada vive sem rastreamento.
A paz buscada é de todos para cada.
O Sol tem termômetro e bina,
Nuvens provocadas por curto
E televisão de retina.
Virtualmente,
Sonhar é dar um surto
Ou pular no abismo
Pra cair em cima.
MUDANÇA DE PALAVRAS PARA TRÁS
Para tirar o mel de dentro da abelha,
Queimar o asfalto com uma centelha.
Calcificar as pegadas na praia,
Empurrar o chão antes que você caia.
Jogar pela janela uma porta,
Escolher pedra-sabão
— que imperfeitamente corta.
Navegar no sol do Everest,
Juntar nos braços os raios do sul e do leste.
Ter de volta a fraqueza dos porões,
A estranheza de mudar para trás.
Talvez o erro esteja na escolha:
Não se deixe levar pelo que te toca
— vento carregando a bolha!
Seja vidro moído na roca,
Água fervendo no vapor que borbulha,
Tinta forte da frágil amora,
Borboleta que se auto-orgulha.
Transformação é se estar fora.
QUERO VOLTAR A SER ESPERMA
Engolir o cuspe escarrado
Pedalar ao contrário
Trocar de família
Colar o que fi serrado
Fazer um parto no fraldário
Morar sozinho no outro lado da ilha
Pedir perdão sem estar errado
Pecar no paraíso do inferno
Tirar o sorriso do palhaço
Da juventude a audácia
E do cigarro a fumaça que hiberno.
Maquilar as olheiras do cansaço
Desmanchar o terço da beata
Fugir sem ter culpa
Descasar da esposa ingrata
Como Cristo amar quem insulta.
Quero voltar pra dentro da barriga
Ou pro saco perto da bexiga.
Não sei o que eu tô fazendo aqui fora
Vocês me invejam
E o público me adora.
É COISA PESSOAL DA PESSOA
No banheiro Deus não entra
A grávida na gestação engole o bebê
Lua nova cortada tem cheiro de queijo
Tartaruga na água não é tão lenta
Mulher mal-amada transa sem beijo
Saia vadia sempre venta
Caixão de pobre tem poucas alças
Carro de polícia não leva multa
Cadeira de rodas é trabalho sem férias
Flor de barzinho: troféu de puta.
Essas coisas são muito sérias:
Olhar de manhã no espelho um debilóide
Trocar os óculos da minha ótica
Plantar girassol no asteroide
Dar prazer ao ciúme da neurótica.
Na cabeça dos palestinos um chapéu
Santificando a alma vestida de túnica.
Me larga!
Quero ver o mundo sem buraco no céu
De várias maneiras, mas de forma única.
Por que não voa corpo sem pena
E pena sem corpo voa?
Será que você não entende!
È coisa pessoal da pessoa.
NO FUTURO DO PRESENTE (NU FUTURO)
Vou tomar Coca-Cola em comprimido,
A luz vai ter peso,
Todo livro será ouvido,
Quem for livre estará preso.
A morte será vendável,
Na música a imagem valerá mais,
A mulher totalmente descartável,
Avião voará pra frente e pra trás.
O orgasmo será na mente,
Intelectuais auto-implantarão chips,
Os burros vão ser dementes,
Animais e flora só em vídeo clipes.
Os feios serão doentes,
Os professores lecionarão na tela,
Militares prestarão favores,
Os velhos comerão as belas.
Guerras mundiais por qualquer disse-me-disse,
Computadores com “informatices”,
Roubos eletrônicos,
Ladrões invisíveis e geniais,
Pais desconhecidos de DNAs,
Gays ganharão filhos por trás.
Mãe de laboratório, pai de mictório,
Filhos nascidos da matemática.
Triste! O poeta vai perder a prática.
Pra comer vão te dar lixo atômico,
Mendigos supersônicos
Pela Terra vão durar pouco.
E lá na frente,
Serei chamado de gênio e não de louco.
obs.: Este texto é de 1999
SAI DESSE CORPO QUE NÃO TE PERTENCE
Faça o amor te recuperar,
O coração que bate é o que pode sangrar.
Para de pedir a Deus;
A mão que ora também é do adeus.
Tenha esperança no olhar;
Quem vê pode revelar.
Seja sincero nas palavras;
Quem você mata será suas larvas.
Dê carinho pelas mãos;
Afago verdadeiro jamais é pago.
Ama a si mesmo;
Autoestima vem de baixo para cima.
Nem em pensamentos minta;
Sinta o peso de viver indefeso.
Nunca se apague nas trevas;
Finja que não está aceso.
Viva ao lado de sua família;
Acredite no tesouro dessa ilha.
Siga o que é bom sem se humilhar.
Reaja se apanhar, mas sem rebater,
Pra não perder tempo de levantar.
Continue sua evolução,
Que nada mais é
Do que fazer da fé
Uma silenciosa revolução.
RECITAL DA BURGUESIA
Cai no meu olho
Uma garça branca acorrentada de lama,
Um pedaço de planta em fotossíntese,
A luz do cometa em câmera lenta,
Na mesma velocidade da minha ilusão.
Subiu nos braços da gestante
O leite espirrante.
A fome me causou alucinações;
Sem variações, quero mastigar
Migalhas de frustrações,
Falhas dessa ótica burguesa,
Dessas palavras belas… de tristeza,
Que da janela do barraco,
Aqui de cima dos livros de Florbela Espanca,
O bonito sacrifício de escrever
Ainda me encanta.
Suporta tudo que, por dentro,
Essa caneta me arranca,
E a força que tenho de continuar
Decodificando a poesia da Zona Sul
Já não é tanta.
O que vocês escrevem
Não me dá almoço nem janta.
Pois saibam que todo poeta é um deus,
E a poesia é o diabo vestido de santa.